Minha avó morreu antes mesmo de
eu nascer. Não sei como, mas já ouvi muitas histórias. A maioria contada por
meus primos mais velhos só para me assustar. Tudo o que ela me deu de presente
foi uma boneca. A boneca tinha o corpo de pano, enfeitado por um vestidinho de
babado lindo, o rosto pálido de porcelana e o olhar fixo e assustador.
Costumava ser usada apenas como
enfeite, mas quando eu fiz oito anos, e depois de muito insistir, minha mãe
achou que eu já estava grandinha o suficiente para brincar com ela, desde que
tomasse cuidado para não quebrar o rostinho dela e me machucar.
Eu costumava tratar meus
brinquedos como vivos, com sentimentos. Especialmente as minhas bonecas. E
quando olhava para aquela bonequinha, a sua “pele” pálida e fria como a neve e
seu olhar vazio me passavam a impressão de que ela estava muito triste.
Para mim fazia sentido, a boneca deveria ter no mínimo uns cinquenta anos e, durante esse tempo inteiro ninguém brincou com ela, ninguém a deu carinho, atenção ou amor. Ficava apenas parada numa estante empoeirada, abandonada, como um simples enfeite.
Assustei-me
quando minha mãe disse que ela não tinha nome. Como uma boneca pode não ter
nome? Senti muita pena dela e resolvi a chamar de um nome alegre, divertido,
para que talvez assim ela se sentisse mais feliz e pudesse compensar os anos
sem nome naquela prateleira.
Pimpinha. Era o nome perfeito. A
pronúncia era quase o som de um sorriso, quase como uma boa piada. Era fofo,
engraçadinho, bonitinho e muito alegre.
Levei Pimpinha para o meu quarto,
a apresentei às outras bonecas, a fiz tomar chá, à levei no colo para onde
fosse. Os dias se passavam e eu sentia que a tristeza de Pimpinha também
passava aos poucos.
Um dia a minha amiga Flávia veio
fazer um trabalho da escola na minha casa. Depois do trabalho feito, a levei ao
meu quarto para brincar e a apresentei aos meus brinquedos, especialmente à
Pimpinha, que já havia se tornado minha boneca preferida. Tanto que nem mais
brincava com outros brinquedos. Ela era diferente, linda, apesar de ausente.
― Credo, que boneca assustadora!
― disse Flávia ao conhecer a Pimpinha.
― Não fale assim da Pimpinha! ―
Briguei com ela.
Ela riu.
― Por quê? O que ela vai fazer,
me matar? ― Ela disse, ainda em gargalhadas. Enquanto
sacudia a Pimpinha para fazer ela andar como um zumbi.
― Claro que não! Larga ela! ― Eu
disse puxando ela de volta para mim.
― Ai, credo! Que mau humor! Eu,
hein, até parece que a boneca é viva.
Bom, para mim parecia mesmo. Para
mim sempre pareceu. Eu sempre tratei os meus brinquedos como vivos, mas a
Pimpinha era diferente, eu sentia uma energia vindo dela, algo em seu olhar.
Mas parecia que eu era a única que conseguia ver isso, era a única que
conseguia entendê-la.
Ao final do dia, Flávia me pediu
desculpas e me pediu a Pimpinha emprestada, disse que tinha gostado da boneca e
queria apresentá-la às bonecas dela. Eu concordei. Mas quando Flávia pôs sua
mão na Pimpinha para pegá-la alguma coisa arranhou seu dedo.
Uma gota de sangue escorreu. Era
a porcelana, que apresentava uma leve ponta.
― Eu acho que a Pimpinha não quer
ir com você, ela vai sentir muitas saudades daqui. Ela ainda não está
acostumada, foi uma boneca de enfeite por muito tempo.
― Bobagem! Foi só um acidente!
Além disso, a Pimpinha tem que sair um pouco, conhecer lugares novos, outras
bonecas. ― Ela disse, visivelmente debochando da minha cara e do jeito que eu
tratava a Pimpinha como viva. Mas ainda assim, um pouco a desagrado eu aceitei
emprestá-la.
No dia seguinte, o telefone
tocou. Minha mãe atendeu e disse que era para mim, rindo. Eu me assustei, era
só uma criança, nunca tinha recebido um telefonema, me senti importante.
― Lívia, sou eu a Flávia.
― Oi, Flávia, como está a Pimpinha?
― É sobre isso que eu queria
falar. ― Ela disse nervosa ― Meus pais saíram e me deixaram sozinha brincando
com ela. Mas ela caiu... é... bom... Sabe aquela rachadura que ela tinha na
carinha dela, né?
― Sei ― eu disse preocupada. Se
alguma coisa acontecesse com a Pimpinha minha mãe ia me matar.
― Então, bom, ela caiu no chão...
e... e...
― Ai, fala logo!
― Bom, é que... ela arranhou um
pouquinho e aumentou mais a rachadura.
― Flávia, você quebro a minha
boneca!
― Não briga comigo ― Ela disse,
quase chorando ― A Pimpinha tá me olhando de um jeito estranho, eu estou com
medo.
― Flávia, dá pra parar de
brincadeira? Minha boneca não é assustadora!
― Ela é sim! ― Lívia gritou ― Só
você não vê isso! Enfim, eu preciso que você venha aqui, acalmar ela ou levar
para longe de mim, sei lá. Eu to com medo de acontecer alguma coisa!
― Flávia, isso é sério? ― Pela
voz trêmula dela, parecia.
― É claro que é, pô! Você sabe
que eu não brinco com essas coisas! ― Isso chegava a ser irônico, Flávia sempre
brincava com essas coisas.
― Tudo bem, Flávia, quando seus
pais voltarem eu vou aí...
― Acorda! ― Ela me interrompeu ―
Eu to pedindo sua ajuda agora, meu! Vem logo, pô!
― Flávia, eu não posso. Minha mãe
não ia deixar eu ir na sua casa sem seus pais aí, né? Acorda você, pô!
― Ai garota, pelo amor de Deus! ―
sua voz estava muito séria ― Eu to pedindo a sua ajuda. Eu to REALMENTE com
medo de alguma coisa acontecer. Se vira aí! Fala pra sua mãe que meus pais tão
em casa e que eu só quero te devolver a Pimpinha rapidinho, eu abro o portão
pra você e te dou logo a boneca, ninguém vai saber de nada.
― Tá bom... ― Eu concordei, não
gostava de mentir para a minha mãe, mas a Flávia era minha amiga. Minha amiga
medrosa, mas minha amiga. E eu já estava com saudades da Pimpinha.
Flávia morava a apenas uma rua da
minha, e como o bairro era pouco movimentado, não foi muito difícil convencer
minha mãe a me deixar ir lá.
Toquei a campainha. O portão se
abriu sozinho. Não era um desses portões modernos que se abre à distância por
um botão. Mas ele abriu sozinho.
“Bobagem, ele já estava aberto e
eu não percebi, a Flávia deve ter deixado assim para eu entrar logo” me
convenci.
Entrei. Chamei pela Flávia. Nada.
Estava começando a me assustar.
“Humm, no mínimo ela ta lá no
quarto dela se tremendo toda. Ou senão isso tudo é uma pegadinha e ela só ta
tentando me assustar... Não seria a primeira vez.”
Mas ao chegar às escadas vi uma
cena assustadora.
Flávia estava jogada nos
primeiros degraus, com o pescoço, braços e pernas revirados. Um rastro de
sangue vinha desde o andar de cima, mostrando que ela havia rolado por todo o
lance de escadas. E seu rosto tinha batido no chão com força, abrindo sua
cabeça enquanto pedaços do seu cérebro se precipitavam para a frente.
E no alto das escadas, sentada
comportadamente e intocada estava Pimpinha, com a rachadura do seu rosto
aumentada, exatamente como havia dito Flávia. A espuma que a preenchia vazava
pela rachadura, exatamente como o cérebro de Flávia.
E pela primeira vez, pimpinha não
exibia mais um olhar de tristeza. Olhando bem em seus olhos, eu podia jurar que
pimpinha estava sorrindo.
Logo os pais de Flávia chegaram
em casa e se desesperaram ao ver o que havia acontecido. Um certo tempo depois
minha mãe viria me perguntar o que havia acontecido ali, eu tentei explicar
para ela que foi a Pimpinha, mas ela nunca acreditou em mim. Tive que ir a
psicólogos pela minha vida inteira para tentar tratar o meu medo de bonecas,
mas tudo foi em vão. Eu
me lembro daquela cena, e eu tenho certeza que foi real.
Eu sei que Pimpinha se vingou. E
sei que desse dia em diante eu nunca mais ousei chegar perto de uma boneca. Eu
nunca mais fui criança. Eu nunca mais brinquei.
Gabriel Valeriolete