quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Vida e Morte de Willian Eloy


Somente em casa deixou uma carta, para que pudessem encontrar a razão de tal ousadia.

Soturno e triste era o vagar pela noite nebulosa. Postes antigos e recurvados derramavam o amarelo vivo sobre seu caminho, fazia frio, principalmente dentro.

Ainda andava sem rumo, queria apenas esquecer, até as malditas cadeiras de ferro, moldadas com traços retorcidos a formar círculos, lembravam o símbolo do seu antigo amor, o coração.

Apertou um pouco mais contra a cabeça sua touca preta, e se fechou mais no interior de seu casaco de couro. Era o fim, tudo à sua volta estava mais negro, adentrava cada vez mais o profundo breu da madrugada.

Seu caminhar era incessante, tão incessante quanto as lágrimas que congelavam a meio caminho de sua boca, boca essa que nunca mais encontraria aqueles lábios.

As grandes construções ao seu redor ocultavam de sua vista o céu ao passo em que pareciam querer devorá-lo, mas já não tinha medo, a vida havia perdido em um curto passado. Seu objetivo era longínquo, mas não voltaria atrás.

O tempo passava e quando chegou à bela ponte, se apressou a olhar o rio congelado que morava a alguns metros abaixo. Sua superfície era dura, mas por baixo jazia sua real força, oculta pela beleza e inocência do branco. Ali repousava a quem iria entregar a vida que já anteriormente perdera.

Estava cansado de ter que lutar contra seu coração, que apertava dentro de seu peito e parecia querer entrar em si mesmo. As lágrimas salgadas e ininterruptas que gelavam sua face teriam um fim ao casar com as águas doces que corriam até o infinito.

Nenhum carro passava no momento, a alvorada nascia com seu lento esplendor, em poucos minutos o sol se faria presente para assistir ao fim.

Retirou seus óculos escuros e o deixou cair como um aviso do que viria depois, assistiu sua queda admitindo um enorme valor á visão. Uma fonte amarela despontava a muitos quilômetros na frente, mostrando o céu límpido e azul que parecia brilhar de contentamento.

O primeiro pé foi o mais difícil, lembrou-se da carta qual deitara em sua cama antes de partir. O segundo pé foi até fácil, deu as costas para o sol, como se desejasse falar que ninguém o poderia impedir, abriu os braços e olhou uma vez para sua mão enluvada e depois para a outra que da mesma forma estava.

Um farol de carro despontou no outro lado da ponte e o ronco do motor foi como um tiro que começa uma partida, mas aquele tiro seria para o fim dela.

Com um pulo para trás se arremessou ao léu, a distância até o impacto não mataria, mas a correnteza por baixo e as placas de gelo resolveriam tal problema.

Vento, fazendo seus cabelos eriçarem-se, queriam voltar para o alto da ponte, mas não estavam no controle.

O impacto foi forte, a dor de suas pernas quebrando atingiu o corpo inteiro, sim, aquele era o término de uma existência. As águas o arrastavam para seu covil enquanto seu pulmão implorava por ar, a dor era inconcebível. O que o levara a comerter tal loucura?

O arrependimento foi rápido, tão rápido quanto a queda.

Sim, estava morrendo, mas queria viver. O arrependimento chegou tarde demais, agora ninguém o poderia ajudar. Viu cenas antigas e recentes, todas voaram por sua mente em um turbilhão, como se fossem sonhos impalpáveis, em menos de um segundo.

Sua boca se abriu quando seu nariz foi violentado pelas águas, o ardor de estar queimando por dentro... O branco se torna negro, a luta cessa e a dor desaparece. A escuridão total fez morada em seu corpo que de sua alma se esvaziava, podia sentir.

Fim...

Sentiu como se não tivesse corpo, estava flutuando. A dor fora embora junto com as preocupações terrenas, mas estava triste, queria ter vivido mais. Deixara amigos e família em seus colchões, à surdina da madrugada, para adentrar seu maldito egoísmo e dar cabo de algo que não lhe pertencia.

Uma luz começou a brilhar distante e sentiu seu corpo sendo puxada lentamente naquela direção. Seria tragado pela luminosidade branca que agora se misturava com tons azuis, verdes e amarelos. Vozes que não conseguia identificar se fizeram notar como sussurros distantes, tudo o convergia para o final.

Aquele magnetismo se intensificou quando o canto se tornou mais audível, sentia ir mais rápido e mais rápido rumo ao tão desejado e repudiado final. Sem demora o inevitável baque contra a luz aconteceu.

Para finalmente encontrar a verdade.

Vomitou enquanto reparava que seus olhos já estavam abertos a muito. Somente a mente vagava por outra dimensão, mas não tardou, retornou e pode ver seu velho casaco molhado, reparou em um de seus sapatos faltando e um rio corria aos seus pés e as vozes que escutava eram na verdade um choro que acontecia ao seu lado, onde uma figura ajoelhada repousava as mãos no chão, para onde pareciam convergir suas lágrimas.

Seu corpo se contraiu para se livrar de mais água indesejada, aproveitou o embalo involuntário e se virou. Para sua grande surpresa, o motivo de tudo ali estava, com aquele suéter azul que lhe cabia tão bem e olhos castanhos tão quentes.

Não suportou olhar por mais tempo, seu corpo estava fraco, se deixou estirar sobre o manto verde que os acomodava, o sol acima se mostrava sorridente, como uma criança que ganhou um novo brinquedo. Queria falar, mas a garganta ainda ardia. Mesmo assim tentou:

― M...mas como?

Cerrava os olhos por conta do sol, mas já sentia melhor.

― Cometi um erro e vim para pedir perdão. É com você que quero passar o resto dos meus dias.

Inclinou-se um pouco e olhou com aqueles olhos que pediam perdão por uma grande idiotice. Sentia-se uma nova pessoa, alguém que havia provado do pior arrependimento, passaria a valorizar cada momento de sua vida como se ela fosse se esvair em pouco tempo. Olhar para aquele corpo molhado lhe criou um novo tipo de sentimento.

― Obrigado pelo que fez por mim, mas saiba que para mim é o fim. Finalmente pude descobrir o quão infantil nós temos sido, somos crianças que acham conhecer o mundo. Admito que esteja repleto de gratidão por me tirar da loucura, mas de você não desejo mais nada.

Foi difícil falar, fez inúmeras pausas, mas as palavras saíram. Seu ritmo só fez piorar o significado do que dissera.

Aquele corpo forte, que lhe tirara da água, ficou sem reação. O olhar se distanciou a procurar algo que ninguém mais sabia. Fechou os punhos em um punhado de grama e começou a se levantar.

Ao ficar de pé se estabeleceu entre o corpo no chão e o sol, se tornando assim uma forma negra que tanto poderia ser homem ou mulher. Levou aquela sombra de braço nas costas e a retornou com algo.

Esse algo foi erguido, somente para descer furiosamente sobre o indefeso e fraco corpo que se recuperava deitado. Com as pernas quebradas sabia não poder correr.

Somente na terceira vez que o objeto descia, reparou que uma faca, manejada com fúria, atravessava sua costela. E mais uma, duas, três vezes.

Real fim...

E acordou suado ainda em sua cama, nunca havia deixado sua casa. Retirou uma mecha de cabelo de sua face e pôs as mãos onde deveriam haver fendas feitas a facadas, mas nada além seu copo saudável repousava sobre suas roupas.

Desviou o olhar para o móvel de cabeceira e reparou em um pedaço de papel com palavras imundas, trasbordantes de rancor e mágoa. Sentiu nojo de si mesmo, nojo da outra pessoa e respirou fundo o odor da vida.

Levantou-se, pegou o bilhete e o rasgou em tantos pedaços quanto pode. Lágrimas totalmente involuntárias brotaram-lhe e tornaram a percorrer o mesmo caminho que fizeram em sonho.

Não faria mais nada daquilo que planejava, não valia à pena. A vida era enorme e merecia ser vivida plenamente. Seus dias já estavam contados, mais uma semana, talvez mais oitenta anos... Não importava, queria aproveitar tudo quanto pudesse tocar, provar e sonhar.

                Verdadeiramente um início...


Willian Eloy

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