Somente em casa deixou uma carta, para que pudessem encontrar a razão
de tal ousadia.
Soturno e triste era o vagar pela
noite nebulosa. Postes antigos e recurvados derramavam o amarelo vivo sobre seu
caminho, fazia frio, principalmente dentro.
Ainda andava sem rumo, queria
apenas esquecer, até as malditas cadeiras de ferro, moldadas com traços
retorcidos a formar círculos, lembravam o símbolo do seu antigo amor, o
coração.
Apertou um pouco mais contra a
cabeça sua touca preta, e se fechou mais no interior de seu casaco de couro.
Era o fim, tudo à sua volta estava mais negro, adentrava cada vez mais o
profundo breu da madrugada.
Seu caminhar era incessante, tão
incessante quanto as lágrimas que congelavam a meio caminho de sua boca, boca
essa que nunca mais encontraria aqueles lábios.
As grandes construções ao seu
redor ocultavam de sua vista o céu ao passo em que pareciam querer devorá-lo,
mas já não tinha medo, a vida havia perdido em um curto passado. Seu objetivo
era longínquo, mas não voltaria atrás.
O tempo passava e quando chegou à
bela ponte, se apressou a olhar o rio congelado que morava a alguns metros
abaixo. Sua superfície era dura, mas por baixo jazia sua real força, oculta
pela beleza e inocência do branco. Ali repousava a quem iria entregar a vida
que já anteriormente perdera.
Estava cansado de ter que lutar
contra seu coração, que apertava dentro de seu peito e parecia querer entrar em
si mesmo. As lágrimas salgadas e ininterruptas que gelavam sua face teriam um
fim ao casar com as águas doces que corriam até o infinito.
Nenhum carro passava no momento,
a alvorada nascia com seu lento esplendor, em poucos minutos o sol se faria
presente para assistir ao fim.
Retirou seus óculos escuros e o
deixou cair como um aviso do que viria depois, assistiu sua queda admitindo um
enorme valor á visão. Uma fonte amarela despontava a muitos quilômetros na
frente, mostrando o céu límpido e azul que parecia brilhar de contentamento.
O primeiro pé foi o mais difícil,
lembrou-se da carta qual deitara em sua cama antes de partir. O segundo pé foi
até fácil, deu as costas para o sol, como se desejasse falar que ninguém o
poderia impedir, abriu os braços e olhou uma vez para sua mão enluvada e depois
para a outra que da mesma forma estava.
Um farol de carro despontou no
outro lado da ponte e o ronco do motor foi como um tiro que começa uma partida,
mas aquele tiro seria para o fim dela.
Com um pulo para trás se
arremessou ao léu, a distância até o impacto não mataria, mas a correnteza por
baixo e as placas de gelo resolveriam tal problema.
Vento, fazendo seus cabelos
eriçarem-se, queriam voltar para o alto da ponte, mas não estavam no controle.
O impacto foi forte, a dor de
suas pernas quebrando atingiu o corpo inteiro, sim, aquele era o término de uma
existência. As águas o arrastavam para seu covil enquanto seu pulmão implorava
por ar, a dor era inconcebível. O que o levara a comerter tal loucura?
O arrependimento foi rápido, tão rápido quanto a queda.
Sim, estava morrendo, mas queria
viver. O arrependimento chegou tarde demais, agora ninguém o poderia ajudar.
Viu cenas antigas e recentes, todas voaram por sua mente em um turbilhão, como
se fossem sonhos impalpáveis, em menos de um segundo.
Sua boca se abriu quando seu
nariz foi violentado pelas águas, o ardor de estar queimando por dentro... O
branco se torna negro, a luta cessa e a dor desaparece. A escuridão total fez
morada em seu corpo que de sua alma se esvaziava, podia sentir.
Fim...
Sentiu como se não tivesse corpo,
estava flutuando. A dor fora embora junto com as preocupações terrenas, mas
estava triste, queria ter vivido mais. Deixara amigos e família em seus
colchões, à surdina da madrugada, para adentrar seu maldito egoísmo e dar cabo
de algo que não lhe pertencia.
Uma luz começou a brilhar
distante e sentiu seu corpo sendo puxada lentamente naquela direção. Seria
tragado pela luminosidade branca que agora se misturava com tons azuis, verdes
e amarelos. Vozes que não conseguia identificar se fizeram notar como sussurros
distantes, tudo o convergia para o final.
Aquele magnetismo se intensificou
quando o canto se tornou mais audível, sentia ir mais rápido e mais rápido rumo
ao tão desejado e repudiado final. Sem demora o inevitável baque contra a luz
aconteceu.
Para finalmente encontrar a verdade.
Vomitou enquanto reparava que
seus olhos já estavam abertos a muito. Somente a mente vagava por outra
dimensão, mas não tardou, retornou e pode ver seu velho casaco molhado, reparou
em um de seus sapatos faltando e um rio corria aos seus pés e as vozes que escutava
eram na verdade um choro que acontecia ao seu lado, onde uma figura ajoelhada
repousava as mãos no chão, para onde pareciam convergir suas lágrimas.
Seu corpo se contraiu para se
livrar de mais água indesejada, aproveitou o embalo involuntário e se virou.
Para sua grande surpresa, o motivo de tudo ali estava, com aquele suéter azul
que lhe cabia tão bem e olhos castanhos tão quentes.
Não suportou olhar por mais
tempo, seu corpo estava fraco, se deixou estirar sobre o manto verde que os
acomodava, o sol acima se mostrava sorridente, como uma criança que ganhou um
novo brinquedo. Queria falar, mas a garganta ainda ardia. Mesmo assim tentou:
― M...mas como?
Cerrava os olhos por conta do
sol, mas já sentia melhor.
― Cometi um erro e vim para pedir
perdão. É com você que quero passar o resto dos meus dias.
Inclinou-se um pouco e olhou com
aqueles olhos que pediam perdão por uma grande idiotice. Sentia-se uma nova
pessoa, alguém que havia provado do pior arrependimento, passaria a valorizar
cada momento de sua vida como se ela fosse se esvair em pouco tempo. Olhar para
aquele corpo molhado lhe criou um novo tipo de sentimento.
― Obrigado pelo que fez por mim, mas
saiba que para mim é o fim. Finalmente pude descobrir o quão infantil nós temos
sido, somos crianças que acham conhecer o mundo. Admito que esteja repleto de
gratidão por me tirar da loucura, mas de você não desejo mais nada.
Foi difícil falar, fez inúmeras
pausas, mas as palavras saíram. Seu ritmo só fez piorar o significado do que
dissera.
Aquele corpo forte, que lhe
tirara da água, ficou sem reação. O olhar se distanciou a procurar algo que
ninguém mais sabia. Fechou os punhos em um punhado de grama e começou a se
levantar.
Ao ficar de pé se estabeleceu
entre o corpo no chão e o sol, se tornando assim uma forma negra que tanto
poderia ser homem ou mulher. Levou aquela sombra de braço nas costas e a
retornou com algo.
Esse algo foi erguido, somente
para descer furiosamente sobre o indefeso e fraco corpo que se recuperava
deitado. Com as pernas quebradas sabia não poder correr.
Somente na terceira vez que o
objeto descia, reparou que uma faca, manejada com fúria, atravessava sua
costela. E mais uma, duas, três vezes.
Real fim...
E acordou suado ainda em sua
cama, nunca havia deixado sua casa. Retirou uma mecha de cabelo de sua face e
pôs as mãos onde deveriam haver fendas feitas a facadas, mas nada além seu copo
saudável repousava sobre suas roupas.
Desviou o olhar para o móvel de
cabeceira e reparou em um pedaço de papel com palavras imundas, trasbordantes
de rancor e mágoa. Sentiu nojo de si mesmo, nojo da outra pessoa e respirou
fundo o odor da vida.
Levantou-se, pegou o bilhete e o
rasgou em tantos pedaços quanto pode. Lágrimas totalmente involuntárias
brotaram-lhe e tornaram a percorrer o mesmo caminho que fizeram em sonho.
Não faria mais nada daquilo que
planejava, não valia à pena. A vida era enorme e merecia ser vivida plenamente.
Seus dias já estavam contados, mais uma semana, talvez mais oitenta anos... Não
importava, queria aproveitar tudo quanto pudesse tocar, provar e sonhar.
Verdadeiramente um início...
Willian Eloy
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