sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Solidão Eterna de Gabriel Valeriolete


(texto inscrito na antologia Crônicas da Fantasia da editora Literata)

       Eu tentava, juro que tentava. Mas como é difícil resistir a uma mordida. Nós somos criaturas da noite, amaldiçoados a nunca mais ver a luz do Sol e sedentos por sangue.

       Nossa espécie nem deveria existir, quanto mais resistir. Mas tenho que admitir, que para uma criatura que acabou de alcançar a imortalidade, ainda temo a morte. Dizem que o tempo cura tudo, com o tempo a sua sede diminui e a sua piedade para com os humanos também. Dizem que você se acostuma a viver à noite e que chega a se esquecer do que é o Sol.

        Eu estou recém-transformado, mas já começo a me esquecer de certas coisas. Acho que grande parte da memória é apagada quando se morre. Eu me lembro da outra vida, mas tudo não passa de flashes e borrões sem sentido.

        Sem sentido, mas com sentimentos. Mas com alegria. Ah, me lembro da minha infância, dos meus pais, da minha esposa, dos meus filhos.

        O pior não é a escuridão, ou a sede de sangue, ou os instintos animais que te transformam aos poucos em algo cada vez menos humano, cada vez mais monstro. O pior é essa solidão! Por isso que muitos vampiros saem à caça de fêmeas para povoar seus haréns. Um imortal solitário é uma solidão eterna. Mas eu não procuro por haréns. Apenas queria minha família de volta. Não acho que sexo e sangue possam curar essa solidão que nós sentimos. Eu preciso de uma parceira para minha eternidade inteira. Eu preciso da Margaretti de volta.

       Observava a janela pensando se deveria transformá-los ou não. Margaretti colocava as crianças para dormir, enquanto tentava esconder a preocupação por eu ainda não ter voltado para casa. De fato só tentava. A preocupação ainda era bem visível e volta e meia ela tentava ligar para meu celular, que a esta hora da madrugada deveria estar perdido em uma rua obscura, sem carga, se não tivesse sido roubado ou atropelado por um carro, o que era muito mais provável.

        Era egoísmo, sim! Não poderia submeter-lhes a esse sofrimento! Uma família de filhos das trevas, sugadores de sangue! É absurdo, eles viveriam melhor sem mim. Mas eu não poderia viver sem eles. Eu não poderia passar a eternidade sozinho. Eu sentia que minha vida não fazia mais sentido, que eu deveria me matar.

        Mas vampiros temem a morte, um temor irracional, instintivo. Um temor maior ainda que o humano. Um temor que não deveria habitar uma criatura imortal.

        Ela terminou de pôr as crianças na cama e desceu as escadas, indo para a sala. Vestia uma camisola dourada, leve. Podia ver seu pescoço e ombros desnudos, com o cabelo preso pela piranha. O cheiro de seu já tão conhecido perfume de avelã se misturava ao cheiro do sangue que pulsava em suas veias e ao odor de sua leve transpiração. Pôs-se a olhar-se espelho, examinando-se lentamente, como sempre fazia quando tinha algum problema sério. Eu sabia que na verdade sua mente não estava lá, sua mente vagava pelo mundo à procura de explicações sobre o meu desaparecimento repentino.

       Ai, o olfato! O mais maligno dos sentidos, ele hipnotiza a todos de minha nova raça, tornando-nos seus servos leais.

       Tentei me manter afastado, mas meus instintos me fizeram entrar no quarto para observá-la mais de perto. Sorrateiramente, sem fazer um único som.

        Não sabia o que fazer, seu cheiro de sangue era tentador, irresistível, me chamando a chegar mais perto. Passar a eternidade juntos. Seria romântico, não fosse aterrorizador.

        Então ela virou-se inesperadamente e se deparou comigo, levando um susto enorme. Eu deveria estar muito mais pálido, com a aparência de um cadáver. O que no final das contas eu era. Um cadáver ambulante.

         — Matheus? É você mesmo? — Ela perguntou aflita, após se recompor do susto. Olhei-me no espelho da sala, na esperança de verificar o quanto minha aparência havia mudado. Mas o espelho nada me mostrou.

         — Eu me faço a mesma pergunta. — Limitei-me a dizer.

         — Matheus? O que aconteceu com você, você está bem? — Disse ela, enquanto se precipitava na minha direção. Um único passo à frente e seu cheiro inundou minhas narinas, quase me fazendo pular involuntariamente sobre ela.

         — Não! Fique onde está! Não se aproxime! Nem um centímetro! — Eu disse, virando-me de costas, inclinando-me e tapando nariz, boca e olhos na tentativa de me livrar da tentação dos meus sentidos.

         — Matheus, o que está acontecendo? — Ela ameaçou dar outro passo.

         — Eu disse para você não se aproximar! — Gritei, fazendo ela se afastar um pouco com o susto. Fitou-me com um olhar de espanto e apreensão.

        — Matheus, você está me assustando. — Ela sussurrou.

        — Escute, Margharetti, tem algo acontecendo comigo. Uma coisa estranha...

        — Você pode me contar amor, — Ela pronunciou calmamente, e quando a palavra “amor” saiu de seus lábios eu relaxei e olhei para ela. Como eu sentirei saudade dessa palavra — pode me contar tudo, o que está acontecendo? — Ela percebeu que eu havia relaxado e, receosa, tentou se aproximar novamente.

         — Afaste-se! Droga, eu pedi para se afastar! Mulher, será que você não pode me ouvir pelo menos uma vez! Para o seu bem! — Berrei irracionalmente, como uma verdadeira criatura das trevas tomada por seus instintos mais grotescos e primitivos. Ela se assustou e se limitou a abaixar a cabeça e chorar. Aquilo me atingiu profundamente, aproximei-me vagarosamente, para consolá-la, meu lado humano falando mais alto que o lado predador.

         — Desculpe, eu não quis te fazer chorar. Querida. Temo que esta seja a última vez que nos veremos. — Eu tentava explicá-la, confortá-la, agora a apenas um passo de distância. Um perigoso passo de distância.

         — Por quê? O que eu fiz, amor? O que aconteceu tão de repente, me diz?
— Confie em mim. — Eu supliquei. Ela me abraçou. Seu pescoço roçando em meus lábios.

         — Desculpa, eu não posso. — Ela sussurrou, ainda em pranto.

         — Querida. — Tentei dizer algo. Ela me apertou ainda mais forte. Eu me pus a beijar seu pescoço, vagarosamente, instintivamente. Então a mordi, quando dei por mim já estava com os dentes cravados lá e o sangue escorria pelo seu corpo. O que eu fiz?

        Já estava feito. Não havia como voltar atrás. Mas ela não merecia tanto sofrimento, seria egoísmo parar agora e deixar que ela se transformasse num monstro como eu. Apenas chupei o sangue, profundamente, até a última gota, até que ela caísse morta aos meus pés. Antes morta do que transformada nessa aberração que eu sou.

Nesse momento meus filhos Carlos de 5 anos e Sílvia de 3 desciam a escada, juntos como sempre.

— Papai? — Perguntou Carlos que provavelmente havia reconhecido minha voz. Sílvia usava um pijama amarelo de ursinho e puxava sua boneca de pano Emília pela mão, arrastando-a nos degraus.

Quando voltei-me para eles o sangue pingava da minha boca, enquanto Margharetti jazia morta no chão, com uma poça de sangue à sua volta, empapando a sua suave camisola.

        Sílvia soltou um grito estridente. Carlos ficou paralisado de espanto.

E eu me desesperei, não sabia o que fazer e fugi, covardemente. Abandonando duas crianças traumatizadas à própria sorte e matando sua mãe. Minha esposa, meus filhos. Minha família. Agora eu era uma criatura da noite, e família eram só lembranças de um passado doloroso. Passei a imortalidade só e nem ela foi capaz de amenizar o vazio e a dor que eu sentia em meu peito.

Gabriel Valeriolete

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